Artigos

Eu e as minhas limitações

Por Léo Rosa de Andrade Publicado em 02/10/2025 às 08:00
Léo Rosa de Andrade

Alienado: “aquele que vive sem conhecer ou compreender os fatores sociais, políticos e culturais que condicionam os impulsos íntimos que levam a agir da maneira que age” (Houaiss). Alienação: “processo ligado essencialmente à ação, à consciência e à situação dos homens, e pelo qual se oculta ou se falsifica essa ligação de modo que apareça o processo (e seus produtos) como indiferente, independente ou superior aos homens, seus criadores” (Aurélio).

Significações de dicionário talvez não sejam bastantes para a compreensão complexa dos termos. Vai o esforço de alguma complementação: na definição de alienado, “fatores sociais, políticos e culturais” são referência ao meu lugar de existir, às injunções de poder que me envolvem e aos valores que me foram transmitidos, os quais informam a compreensão que tenho dos acontecimentos, porque tudo isso compõe a minha consciência da realidade.

Alienação: é a não percepção de que tudo no mundo afeta o humano; a situação do humano depende do humano; nada está fora da humanidade. As coisas todas decorrem de processos complexos e geram processos complexos produzidos pelos humanos, conforme os interesses dos humanos, causando efeitos nos humanos. O que acontece é História. Nada depende de mágica, astros, energia, sorte ou divindades. Nem de pensamento positivo.

“Por que as garrafas de vinho têm 750 ml, e não 1 l? Divergência entre o sistema métrico de unidades e o sistema imperial inglês, mais antigo. No século 19, o Reino Unido era o principal importador de vinhos franceses. Os ingleses usavam o galão, que equivalia a 4,5 l arredondados. Por causa disso, os franceses adotaram caixas com seis garrafas de 750 ml, que, somadas, dão um galão” (Bruno Vaiano, Superinteressante, 13jan21, editado).

Se essa explicação contemplasse todas as razões, a pessoa informada da relação litro/galão estaria ciente do motivo do volume de prazer vinícola engarrafado. Mas o imbróglio é maior: a França fizera a Revolução Burguesa, derrubara uma monarquia, implantara o sistema de pesos e medidas (o grama, o litro e o metro, este como sendo a décima milionésima parte de um quarto do meridiano terrestre). Forçara a coincidência dos relógios. Quebrara tradições.

O poder francês levou seu modo de calcular peso, volume e distância para quase todo o mundo, mas esbarrou no poder inglês. O que estivesse sobre domínio inglês – não eram poucas nações – ficava com seus parâmetros imperiais. Estados Unidos e Inglaterra, até hoje, recusam-se a adotar o sistema métrico decimal. As relações comerciais entre países com um ou outro sistema obrigam a conversões, sem concessões ao poder de estabelecer o padrão.

Uma garrafa de vinho, pois, não tem, por acaso, determinada quantidade do agradável líquido. Seu volume decorre de relações comerciais, de imposição de pesos e medidas, do poder da França ou da Inglaterra no planeta. Essa contenda subsiste nos nossos interiores influenciados pela cultura europeia pré-Iluminismo: ainda se usa, sem se saber o porquê, dúzia, galão, palmo, polegada ou braça. Um uso em extinção, por falta de expressão de poder.

O alienado, não obstante achar que a “escola da vida” lhe forneceu esperteza suficiente para não ser enganado por ninguém, é, antes de tudo, um ingênuo. É uma enorme inocência acreditar que se pode submeter a escrutínio pessoal a complexidade da História. Perplexos frente ao enredamento do que não alcançam entender, esses ingênuos “advertem-se” por teorias conspiratórias: acreditam em organizações secretas controladoras do nosso devir.

Certa esquerda pensa que o mundo caminha para o fascismo. Certa direita acredita que logo seremos submetidos ao comunismo. Possível, claro, mas não provável. Sim, organizações de indivíduos propagam suas ideologias, países intentam estabelecer e consolidar geopoder, mas o que há de concreto não está como informação disponível para deslumbrados com conjurações “secretas” que só eles sabem onde começou e como vai terminar.

A rota de fuga da alienação é saber que não teremos consciência de tudo. Não tenho ideia da origem das peças que arranjam o meu computador. Quem tem poder para vender ou comprar o que compõe esta máquina? Embora curioso, não darei conta do todo. É impossível. A vida em comum pede articulação com outros que sabem outras coisas. Fidúcia. Sem confiança a coexistência é impraticável. A eterna suspeita de maquinações antes que astúcia é sintoma.

Tenho alguns saberes; desejo outros mais. Certas ciências sei que não sei; talvez, se as buscar, não as compreenda. Imagino que coisas há que jamais imaginei. Sou eu e as minhas limitações. Há vida além delas, mas é nelas que vivo e viverei. O mais é desvario ampliado por redes sociais, contemplando bolhas ideológicas. Alguma orientação? Ceticismo metódico, fontes referenciadas, suspeição das certezas, inclusive das próprias. Estudar.