MEMÓRIA

Monsenhor Odilon: dez anos sem a voz que ensinou Palmeira dos Índios a ser comunidade

Por Cosme Rogério Ferreira* Publicado em 05/12/2025 às 08:10
Odilon Amador dos Santos

Há nomes que permanecem não porque foram repetidos nas solenidades, mas porque se inscreveram – discretamente – na forma como as pessoas vivem e convivem. Em Palmeira dos Índios, essa permanência tem um nome e um rosto: o do Monsenhor Odilon Amador dos Santos, o Padre Odilon de tantas gerações, cuja morte, em 5 de dezembro de 2015, marcou o fim de um ciclo pastoral e humano que ultrapassou a moldura da Igreja. Hoje, quando se completam dez anos de sua partida, a cidade não revisita apenas um sacerdote: revisita um modo de viver a fé e a vida pública.

Um menino do sertão marcado pela violência


Odilon nasceu em 28 de março de 1928, na Fazenda Pilões, em Pão de Açúcar, numa época em que o cangaço ainda pairava sobre o sertão alagoano. Era o caçula de Maria da Pureza Barros e Manoel Amador dos Santos, criado entre leite tirado no curral, carneiros no pasto da caatinga e o lento amadurecer das manhãs ribeirinhas.

A infância, porém, não foi apenas bucólica: quando ele tinha cinco anos, sua família foi ameaçada por Corisco, o temido “Diabo Louro”. O bando cercou a casa-grande, matou animais e baleou o vaqueiro Luiz Maravilha. A dor desse episódio, seguido da morte de sua mãe um ano depois, deixou marcas profundas. Sua irmã Fidelcina, a “Dona Nem”, se tornaria sua segunda mãe – e esse vínculo afetivo moldaria a sensibilidade pastoral que o acompanharia até o fim da vida.

A história de Odilon começa, portanto, no encontro entre fragilidade e resistência – território onde ele aprenderia cedo que “a vida só faz sentido quando se cuida dos outros”.

O chamado que veio cedo


Em 1935, iniciou as primeiras letras na pequena escola da região. Três anos depois, encontraria no altar o espaço de sua formação inicial: tornou-se coroinha na Matriz do Sagrado Coração de Jesus, sob a atenção do velho sacristão Leonildo Simões, conhecido por incentivar vocações.

Aos treze anos, ingressou no Seminário Metropolitano de Maceió. A malária quase o afastou dos estudos por um ano, mas a persistência o fez retornar. Já no final da formação, em 1953, foi enviado ao Seminário de São Leopoldo (RS), centro intelectual respeitado no Brasil. Ali, destacou-se como estudante brilhante, orador apaixonado e observador atento das tensões sociais de seu tempo.

Ordenou-se em 6 de janeiro de 1955, aos 26 anos. No dia seguinte celebrou a primeira missa, cercado pelo coral infantil “Canarinhos de Pão de Açúcar”. Era o início de uma vida que uniria cultura, fé, denúncia e ternura.

O encontro decisivo com Palmeira dos Índios


Três meses após sua ordenação, chegou como vigário coadjutor à Paróquia de Nossa Senhora do Amparo, em Palmeira dos Índios. Ninguém imaginava que aquele jovem magro, de voz anasalada e olhar firme, se tornaria uma das figuras mais queridas da cidade.
Seu primeiro gesto pastoral já revelava sua marca: aproximar o velho pároco Monsenhor Macedo dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, responsáveis pelo Ginásio Pio XII – partes então tensas entre si. Ali começava sua tão conhecida vocação de conciliador, uma qualidade que lhe permitiria transitar entre mundos sociais distintos.

O pastor que viu miséria antes de ver pecado


Nos anos seguintes, Padre Odilon iniciaria uma série de ações que redefiniriam a presença da Igreja na cidade. Em uma de suas passagens mais emblemáticas, descobriu que uma casa de prostituição próxima à Catedral abrigava mulheres que se vendiam em troca de comida. Pressionado por fiéis para “fechar aquele antro de perdição”, ele fez o contrário: enviou semanalmente alimentos, até que ninguém mais precisasse se prostituir. O proprietário, sem clientela e sem razão de existir, encerrou o negócio.

O padre foi inicialmente acusado de “sustentar um cabaré”. Mas não se abalou. Seu jeito de fechá-lo foi diferente: arranjando uma solução mais decente do que simplesmente varrer a sujeira para debaixo do tapete. “Deus não impõe. Deus propõe”, repetia. Ainda hoje, quem o conheceu também repete: “Padre Odilon não julgava. Ele enxergava.”

Formador de consciências e de instituições


Entre 1960 e 1970, consolidou uma atuação que ultrapassava a sacristia. Fundou o Colégio Estadual Humberto Mendes, e foi também diretor do “Gigante do Asfalto”, onde criou a biblioteca, o diretório estudantil e a banda marcial. Durante a ditadura militar, recusou-se a dispensar professores e expulsar alunos por questões de ideologia. “São apenas jovens idealistas. Não são subversivos”, dizia ele às autoridades persecutórias.

Na gestão da Fundação de Assistência Cultural e Educacional de Palmeira dos Índios – FACEPI (equivalente das atuais secretarias municipais de Educação e Cultura), deixou marcas profundas na vida cultural da cidade: a criação do Museu Xucurus e da Casa Museu Graciliano Ramos, a publicação de obras fundamentais para a história local e a organização de cursos que formaram gerações de professores e lideranças.

Poucos sacerdotes no Nordeste uniram tão bem a vida pastoral, a educação pública e a construção da memória coletiva como o Padre Odilon.

Renúncia, família, dor e retorno


Em 1978, após refletir à luz do Concílio Vaticano II, renunciou ao sacerdócio para realizar um sonho antigo: constituir uma família. Casou-se com Carmem Lúcia, com quem teve uma filha, Ana Maria. A felicidade do casal durou pouco. A esposa morreu vítima dos efeitos da depressão – um golpe emocional que o silenciou por anos.

Com o apoio de Dom Epaminondas Araújo, segundo Bispo de Palmeira dos Índios, e do povo que o pedia de volta, a Santa Sé autorizou seu retorno ao ministério em 1984. O reencontro com a Catedral foi marcado por lágrimas de contentamento e aplausos eufóricos. “Parecia uma nova ordenação”, recordava o vigário.

Em 1989, recebeu o título de Monsenhor Capelão do Papa João Paulo II, que aceitou sem alarde: “Vaidade das vaidades”, repetia, citando o Eclesiastes. Preferia ser chamado, como sempre, de Padre Odilon.

A voz que enfrentou a fome, a injustiça e o desânimo


Nos anos 1990 e 2000, o Padre Odilon serviu como vigário-geral, juiz auditor e missionário incansável. Atendeu comunidades indígenas Xukuru-Kariri, atuou no autorreconhecimento do povoado Tabacaria como quilombola, celebrou missas nos sítios mais distantes, orientou famílias, acompanhou doentes, formou leigos.

Em 1988, seu discurso na Semana da Pátria se tornaria referência de lucidez e coragem: “Milhões de brasileiros morrem de fome. Outros morrem comendo demais. A salvação deste país está no Evangelho”. E dirigia-se aos jovens: “Nas vossas mãos está o futuro. Mais vale acender um fósforo do que maldizer a escuridão.”

Era a síntese de sua visão humanista: fé como responsabilidade social; esperança como força política; Evangelho como prática cotidiana.

A travessia final


Padre Odilon faleceu em 5 de dezembro de 2015. A notícia espalhou-se pela cidade como se fosse a perda de um parente próximo de todos. Lojas fecharam as portas. Professores choraram nas salas. Jovens que ele orientara ainda crianças reuniram-se nas escadarias da Catedral. Era a despedida de um homem que, para muitos, foi conselheiro, mediador, referência moral.

Sua vida não se resumia ao ritual litúrgico; era tecida de conversas na calçada, visitas a enfermos, mergulhos na política local, defesa dos pobres, paciência com os aflitos e firmeza com os arrogantes.

Dez anos depois: o que permanece?


O Padre Odilon foi sepultado, no dia seguinte à sua Páscoa Definitiva, na Praça do Bom Pastor, onde repousam também os restos mortais de Dom Otávio Barbosa Aguiar, primeiro Bispo da Diocese de Palmeira dos Índios. Em outubro de 2021, a cidade inaugurou o Memorial Monsenhor Odilon Amador dos Santos na Praça Monsenhor Macedo. A escultura de bronze – mais do que símbolo – tornou-se ponto de encontro, de oração, de lembrança e de compromisso.

Mas o verdadeiro memorial permanece espalhado em centenas de histórias:

• na família que deixou de enterrar seus mortos no “Caixão da Caridade”;
• nas mulheres que reencontraram dignidade após sua intervenção;
• nos estudantes que se tornaram professores;
• nos indígenas que o chamavam de irmão;
• nas gerações que aprenderam que fé não combina com autoritarismo.

Dez anos depois, a pergunta que ecoa é: o que faremos com a herança de Padre Odilon? O que significa, hoje, manter vivo seu compromisso radical com o ser humano?

Talvez ele mesmo nos respondesse, com sua simplicidade habitual, ancorado na mensagem do Evangelho: “Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão”.


(*) Graduado em Filosofia, Especialista em História de Alagoas, Mestre em Sociologia e Doutor em Letras em Linguística. Atua como professor do Instituto Federal de Alagoas – Ifal/Campus Batalha. Ocupa a Cadeira n.º 39 da Academia Palmeirense de Letras, Ciências e Artes, cujo patrono é o Mons. Odilon Amador dos Santos.

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