EUA podem usar 'terrorismo' na Tríplice Fronteira para negociar energia de Itaipu, diz analista

Os EUA ressuscitaram antiga acusação de uso da Tríplice Fronteira para o financiamento do "terrorismo" no Oriente Médio, oferecendo recompensas para brasileiros à revelia da Polícia Federal. Ao estilo de Trump, a questão da Tríplice Fronteira poderá ser usada pelos EUA para atingir objetivos econômicos na América do Sul, acredita especialista.
A Embaixada dos EUA em Brasília anunciou o pagamento de recompensas em dinheiro para delatores que providenciem informações sobre suposta atuação do grupo libanês Hezbollah na região da Tríplice Fronteira. Os limites entre Brasil, Argentina e Paraguai são periodicamente apontados pelos EUA como zona de atuação de grupos que consideram terroristas.
"O Departamento de Estado dos Estados Unidos, administrado pelo Serviço de Segurança Diplomática, oferece uma recompensa de até 10 milhões de dólares [cerca de R$ 52 milhões] por informações que levem à interrupção dos mecanismos financeiros da organização terrorista Hezbollah [...] na região da Tríplice Fronteira entre Argentina, Brasil e Paraguai", escreve a representação diplomática dos EUA no Brasil.
De acordo com Washington, o grupo libanês arrecadaria recursos na região, através de atividades ilícitas de diversas naturezas – desde o "tráfico de drogas e contrabando de carvão", até comércio ilegal de "cigarros e produtos de luxo".

O oferecimento de recompensas em território brasileiro, sem aparente coordenação com autoridades locais, surpreendeu os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil. Mas essa não é a primeira vez que os norte-americanos apontam para a Tríplice Fronteira como suposto reduto de atividades terroristas.
"A preocupação com eventual financiamento, mesmo muito parcial, de movimentos terroristas do Oriente Médio partindo de pessoas que vivem na Tríplice Fronteira é algo que já vem de algum tempo", disse o pesquisador em Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), Jonuel Gonçalves. "Inclusive, o Brasil já investigou isso e não encontrou grandes provas."
Após os ataques de 11 de setembro de 2001 nos EUA, o Departamento de Estado do país passou a classificar a Tríplice Fronteira como um "santuário do terrorismo" em seus relatórios. A região das cataratas de Foz do Iguaçu foi, por vezes, igualada a outros "paraísos" para a atuação de grupos inimigos dos EUA, como Somália e Afeganistão.

Pesquisa acadêmica minuciosa realizada sobre o tema no livro "Além dos Limites: a Tríplice Fronteira nas Relações Internacionais Contemporâneas", organizado pelos pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) Rafael Duarte Villa e Isabelle Christine Somma de Castro, aponta que os EUA não foram capazes de provar a atuação de terroristas na região.
Como resultado, em 2013, a Tríplice Fronteira foi retirada da lista de "paraísos terroristas" publicada pelo Departamento de Estado dos EUA, conhecida como Country Reports on Terrorism.

Com o anúncio de recompensa em dinheiro para informantes, a administração Trump parece adotar nova abordagem para coletar as tão esperadas provas de atuação do Hezbollah no coração da América do Sul, escreveu a pesquisadora da USP Somma de Castro no site The Conversation.
Cadê a Polícia Federal?
A ausência de coordenação das ações de Washington com autoridades locais, como a Polícia Federal, preocupa os analistas ouvidos pela Sputnik Brasil. Ao contrário de Washington, o Brasil não reconhece o Hezbollah como uma organização terrorista e conduz política externa própria em relação ao Líbano, afirmou Gonçalvez.
"O Brasil tem boas relações com o Líbano, país no qual o Hezbollah participa da vida política, inclusive tem bancada parlamentar. Então temos aqui um choque de preocupações", considerou o pesquisador da UFF, Jonuel Gonçalves. "Qualquer atividade do Hezbollah, mesmo pacífica, é vista como ameaça pelos EUA, mas não é vista como ameaça pelo Brasil. Mesmo assim, o Brasil toma precauções e faz averiguações."
Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC, Gilberto Maringoni, o Brasil deve reforçar seu direito soberano sobre seu território na Tríplice Fronteira e demandar a participação de seus órgãos de segurança em operações no local.

"Se os EUA têm alguma desconfiança sobre possíveis ações criminosas [na Tríplice Fronteira], devem acionar oficialmente o governo brasileiro, que por sua vez acionaria a Polícia Federal, o órgão competente para tratar dessas questões", disse Maringoni à Sputnik Brasil. "Isso deve ser feito a partir de um pedido formal ao governo brasileiro, que aciona o seu corpo de segurança para investigar."

Ao fazer a proposta de recompensa, os EUA também ignoraram a soberania de Argentina e Paraguai sobre o território. Para Gonçalves, o relacionamento diplomático do Cone Sul com Washington pode ficar "mais agressivo" caso um dos países da região "declare que os EUA não têm autoridade para fazer investigação dentro dos territórios nacionais de países sul-americanos".
Interesses econômicos dos EUA
Por outro lado, a retomada do tema da Tríplice Fronteira poderá ser instrumentalizada pela Casa Branca para atingir outros objetivos na América do Sul, avaliou Gonçalves.
"Os EUA podem estar construindo um elemento de pressão. Isso é uma estratégia já usada pela administração Trump ao usar questões como o tráfico de drogas e imigração durante negociações comerciais com México e Canadá", considerou Gonçalves. "É uma tendência da atual administração norte-americana, fazer isso para depois pressionar do ponto de vista econômico."
Os EUA já deixaram claro qual o interesse econômico que tem na Tríplice Fronteira: a energia excedente da usina binacional de Itaipu, notou Maringoni. O secretário de Estado dos EUA, Marco Rubio, declarou interesse em obter a energia que hoje o Paraguai vende ao Brasil para utilizar em datacenters norte-americanos.

"Temos que discutir como investiremos em países que têm um suprimento de energia capaz de atender a essa demanda. Como, por exemplo, o Paraguai, que tem uma usina hidrelétrica com um acordo de longo prazo com o Brasil para a venda de 50% da energia produzida. Agora que esse contrato expirou estão analisando o que fazer com este excedente de energia que não vai mais para o Brasil", disse Rubio durante oitiva no Senado dos EUA.

De acordo com o Valor Econômico, o Itamaraty preferiu não se pronunciar sobre a fala de Rubio, para que o Brasil não seja visto como país contrário a investimentos de datacenters que consumam a energia de Itaipu.
"O Itamaraty deveria repelir esse tipo de investida dos EUA [na Tríplice Fronteira]. A política externa brasileira, infelizmente, vive um mau momento", lamentou Maringoni.
O novo elemento Hezbollah complica ainda mais as relações na Tríplice Fronteira, em um ambiente já estremecido pelas recentes acusações de espionagem brasileira contra o Paraguai, no contexto das negociações do Anexo C do acordo de Itaipu, que regula o compartilhamento da energia da usina entre Paraguai e Brasil.
"O que os EUA estão fazendo é mais um impacto, mais uma intervenção diversionista, uma intervenção desagregadora [...] que gera um clima de desconfiança e acusações, reforçado pelo uso da tática da recompensa em dinheiro", concluiu Maringoni.