INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA

Análise: fragmentação política mina a integração regional proposta no Consenso de Brasília (VÍDEOS)

Publicado em 30/05/2025 às 19:52
© Foto / Palácio do Planalto / Ricardo Stuckert

Em entrevista à Sputnik Brasil, especialista afirma que a integração regional sul-americana, proposta em 2023 no Consenso de Brasília, para ser concretizada deve colocar na mesma mesa de negociação, em torno de um objetivo comum, espectros políticos opostos que hoje se usam como "espantalhos".

Em maio de 2023, líderes de 12 países sul-americanos assinaram no Brasil o Consenso de Brasília, um acordo de integração, de iniciativa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O acordo visava uma maior cooperação entre países vizinhos por meio de projetos de cooperação em áreas como infraestrutura, segurança, energia e saúde. A iniciativa também mirava uma maior conexão entre os signatários por meio do projeto Rotas de Integração Sul-Americana, que conecta estados brasileiros a países vizinhos.

Dois anos após a assinatura do acordo, a integração não ocorre como o planejado. O xadrez político temperado pela ideologia na América do Sul, que faz a região pender ora para a esquerda ora para a direita, afeta o projeto proposto no Consenso de Brasília, conforme aponta à Sputnik Brasil Ghaio Nicodemos, coordenador adjunto do Núcleo de Estudos Atores e Agendas de Política Externa, pesquisador do Observatório Político Sul-Americano, e doutor e mestre em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP/UERJ).

Ele afirma que, entre 2000 e 2016, foram feitos muitos esforços na América do Sul para construir os dispositivos presentes no Consenso de Brasília. No entanto, a partir de 2015, a fragmentação política da região, sobretudo com a ascensão de governos de direita radical, que levou ao esvaziamento da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), essa integração ficou prejudicada. Já quando Lula assume a presidência da República, em 2023, há governos alinhados à centro-esquerda, como Alberto Fernández, na Argentina, Gustavo Petro, na Colômbia, Luis Arce, na Bolívia, e Gabriel Boric, no Chile.

"Então, Lula percebe que é o momento de tentar retomar esse esforço de coesão e com a compreensão de que havia vários outros obstáculos, outras dificuldades, porque você tem países como Equador, Uruguai, Paraguai, que estão ideologicamente ainda à direita e, consequentemente, você precisa ter um traquejo maior para conseguir trazer todo mundo junto para conseguir investir em grandes projetos", explica.

Nicodemos afirma que ao longo do ano passado houve várias reuniões ministeriais envolvendo líderes e chanceleres, que visavam costurar pontos do acordo e alcançar consensos que se traduzissem em "resultados para a comunidade dos países da América do Sul". Mas esse esforço foi prejudicado com a chegada de Javier Milei à presidência argentina.

"Então, pensando nesse tabuleiro de xadrez da América do Sul bastante dividida, uma organização como o Consenso de Brasília, que está disposta a negociar isso, mas que depende da produção de consensos em pautas comuns, tem tido bastante obstáculo de implementar grandes iniciativas."

Outro problema, segundo o especialista, que afeta a implementação das iniciativas do consenso é a falta de uma capacidade de financiamento presente em todos os países que assinaram o pacto.

"O Brasil, hoje, tem convivido com uma dificuldade muito forte do Congresso aprovar políticas ligadas ao orçamento que possibilitem um bom grau de investimento para essas questões mais estratégicas de infraestrutura, que são bastante dispendiosas. Mas a gente tem, por exemplo, países como o Equador, que tem nenhuma capacidade de investimento e hoje depende quase que exclusivamente de empréstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, do Banco Mundial."

Ele acrescenta ainda que países como o Chile, que atravessa uma situação de polarização que torna precária a governabilidade, e o Peru, onde a atual presidente, Dina Boluarte, está em uma posição bastante frágil, são um desafio à integração.

"Então, tanto do ponto interno de cada um dos membros do Consenso de Brasília, relacionado à governança, governabilidade, capacidade de investimento, quanto do ponto externo, onde a gente tem várias rusgas, várias disputas entre os países, muito pouco de efetivo tem saído dessas declarações conjuntas produzidas no âmbito do consenso", afirma Nicodemos.

De acordo com o especialista, dentro do consenso falta também definir "quem vai pagar a conta", e em que termos, das iniciativas sobre saúde, segurança e infraestrutura.

"É muito bonito você ver uma declaração falando sobre o apoio da região a grandes projetos de saúde, ou a grandes projetos de infraestrutura, ou grandes projetos de segurança comum, mas você não tem, de fato, um plano de metas até quando você pretende estipular, quanto o orçamento de cada país vai ser desenvolvido. Então, esse consenso acaba ficando muito na esfera do ideal", afirma.

Nicodemos aponta ainda que outra falha do consenso envolve projetos de energia, afirmando que o Brasil, hoje, em parceria com países como Bolívia, Chile e Argentina, poderia estar assumindo um protagonismo muito maior a nível internacional na transição energética. Isso porque combinaria a capacidade de produção do triângulo do lítio, composto por Chile, Bolívia e Argentina, com a capacidade brasileira de produzir vários outros minerais estratégicos para a produção de baterias, painéis solares e grides de produção eólica.

"A integração entre esses países poderia estar na ponta de lança desse processo. E é uma coisa, inclusive, que o Consenso de Brasília falha, porque se o Consenso de Brasília, focando menos nesse desafio mais contingencial de abastecimento de energia dos países, focasse em uma renovação da matriz energética e na expansão da capacidade eólica, na expansão da capacidade solar, no desenvolvimento de sistemas de bateria mais eficientes, a gente poderia estar na vanguarda [da transição energética]."

O especialista afirma que o principal desafio da região hoje no que tange à integração é colocar na mesma mesa de negociação, em torno de um objetivo comum, "espetros políticos opostos, que se usam como espantalhos".

"Se a gente não explorar o Consenso de Brasília para que de fato a gente consiga chegar a momentos de alívio e tensão comum, é muito provável que a gente vai ficar sempre nessas lindas de declarações de projetos maravilhosos que não vão para frente, porque não vão ser financiados, porque na primeira crise política um dos países vai dar para trás", afirma.

Ele acrescenta que deve haver compromissos de Estado, não de governo, com negociações independentes de bravatas nas redes sociais de determinados líderes.

"A gente precisa pensar em um novo modelo de integração, um novo modelo de regionalismo, de construção de consensos estratégicos em torno desses desafios coletivos da região, que não fique refém do governo do momento", afirma o especialista.


Por Sputinik Brasil