Rivalidade em segundo plano: como a guerra comercial dos EUA jogou a Índia nos braços da China?

Em reação às tarifas de 50% sobre a importação de produtos pelos Estados Unidos, a Índia voltou os olhares para um rival histórico: a China. Durante encontro bilateral com o presidente Xi Jinping, o primeiro-ministro Narendra Modi chegou a afirmar o comprometimento do país em fortalecer os laços com seu vizinho.
Pela primeira vez em sete anos, o primeiro-ministro indiano desembarcou na China. No fim de agosto, Narendra Modi foi a Tianjin para participar da cúpula da Organização de Cooperação de Xangai, entidade que reúne as principais economias da Ásia Central, Sudeste Asiático e Oriente Médio.
A viagem ocorreu cinco dias após as tarifas norte-americanas de importação de 50%, que juntamente com o Brasil, foram a maior alíquota anunciada até então. Conforme o governo Donald Trump, a medida é justificada pelo aumento da compra de petróleo russo.
Em uma rara reunião bilateral, Modi se encontrou com o líder chinês Xi Jinping e reforçou o comprometimento "em progredir em nossas relações com base no respeito mútuo, na confiança e na sensibilidade". Segundo o governo indiano, é necessário reforçar os laços políticos e econômicos com a China.
Sobre a rivalidade histórica causada por disputas territoriais ao longo dos mais de 3,8 mil quilômetros de fronteira compartilhada entre China e Índia, Modi também ressaltou que o momento é de "paz e estabilidade", situação que contrasta com a de 2020, quando tropas dos dois países chegaram a entrar em confronto.
O professor de economia política da Unilasalle, Marcello Simões Freitas, classificou ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, como um "tiro no pé" o uso das tarifas como pelo governo Trump instrumento de pressão inclusive contra países parceiros dos Estados Unidos, como é o caso da Índia.
"Nos últimos anos, a relação que vinha sendo construída entre Índia e Estados Unidos era quase uma ponta de lança dentro do BRICS, um fator de contrabalanceamento ao poder da China. Agora, essa nova onda de tarifas acabou sendo uma motivação para os indianos reavaliarem suas alianças estratégicas e até colocarem de lado, claro que não totalmente, as questões da rivalidade fronteiriça", pontua.
Segundo o especialista, inclusive a cultura pragmática da Índia quanto à política externa tem facilitado essa aproximação sobre o antigo rival depois que a aliança com Washington passou a se mostrar "não tão confiável".
O professor visitante do King's College London, João Nicolini Gabriel, concorda e acrescenta ao podcast que, apesar das tensões que até outrora dominavam as relações Índia-China, os dois países sempre tiveram posicionamentos parecidos na Organização das Nações Unidas (ONU).
"Se olharmos os últimos anos, especialmente a relação de votos da Índia na ONU, veremos que o país tem uma trajetória historicamente mais convergente com a posição da China. Isso porque compartilham pautas ligadas ao Sul Global e ao chamado terceiro-mundismo durante a Guerra Fria. São temas que hoje vão além dessa divisão geopolítica, sobretudo, questões relacionadas ao desenvolvimento, à necessidade de incentivos à indústria e à resistência às pressões pelo fim do protecionismo."
Modi e a participação no desfile militar pelo Dia da Vitória em Pequim
Outro ponto que chamou a atenção de todo o mundo foi a participação de Modi na parada militar em Pequim que comemorou os 80 anos da vitória chinesa sobre o imperialismo japonês durante a Segunda Guerra Mundial. Conforme Nicolini, o primeiro-ministro indiano sempre evitou marcar presença em eventos como esse para evitar "ruídos" com países parceiros, a exemplo do Japão.
"O que se observa nesse contexto é que Modi tem se aproximado sobretudo da Rússia e, em certa medida, da China. Essa movimentação reflete a necessidade de reafirmar uma posição contrária às medidas adotadas pelos norte-americanos. No cenário político interno, Modi busca reforçar sua imagem de líder nacionalista. Antes, sua proximidade com Donald Trump e com os Estados Unidos era apresentada como prova de sua capacidade de negociação; hoje, porém, essa associação passou a ser vista, em termos populares, como um mico", destacou o especialista.
Diante disso, o primeiro-ministro passou a sofrer pressão interna de partidos da oposição, que usaram esse "fracasso" na política externa para atacar o governo.
"Com isso, Modi procura se alinhar a outros líderes fora do eixo norte-americano para mostrar que não depende exclusivamente dos Estados Unidos", conclui.
Aproximação entre EUA e Paquistão
Por fim, o professor visitante do King's College cita uma situação que tem sido pouco abordada pela imprensa mundial: a aproximação do governo Trump do Paquistão, em processo que, segundo ele, pode ser caracterizado como "diplomacia das cripto".
Isso porque o governo paquistanês fez uma série de acordos para criar um fundo soberano lastreado em criptomoedas, sob a gerência de uma empresa norte-americana ligada à família de Donald Trump — 60% do capital é vinculado ao clã do presidente.
"A grande bandeira econômica do Trump, atualmente, é a segurança jurídica para as empresas de criptomoedas. E essa relação com o Paquistão complica a vida dos indianos, principalmente na questão da segurança [recentemente, os países tiveram um intenso conflito na fronteira]. Tanto é que o Trump recebeu há poucos dias uma liderança do Exército paquistanês na Casa Branca, sem a presença do governo civil", finaliza.