GEOPOLÍTICA

Análise: retomada da militarização da América Latina pelos EUA é motivada por disputa com China

Publicado em 19/08/2025 às 19:34
© AP Photo / Mídia Associada

A recente movimentação de tropas norte-americanas em direção ao México e à Venezuela, sob o pretexto de combater o narcotráfico, reacendeu os alarmes sobre uma possível escalada militar dos Estados Unidos na América Latina.

A avaliação é da professora Flávia Loss, especialista em relações internacionais do Instituto Mauá de Tecnologia (IMT), em entrevista ao podcast Mundioka, da Sputnik Brasil.

Segundo a acadêmica, as justificativas do governo norte-americano se apoiam em um discurso antigo e recorrente. "As mesmas que eles têm usado desde a década de 1970", afirmou. A novidade, agora, é o foco no fentanil, droga sintética que tem causado uma crise de saúde pública nos EUA. No entanto, para Loss, a resposta americana permanece superficial: "É um debate muito raso, que não fala de outras variáveis [...] como o combate ao uso e, principalmente, ao consumo".

Segundo o cientista político Tiago Rodrigues, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), a proposta se insere em uma longa tradição de intervenções norte-americanas na América Latina, sob o pretexto de combater o narcotráfico — mas com objetivos geopolíticos mais amplos.

"A primeira coisa é que esse anúncio recente do Trump não é propriamente uma novidade na história da relação dos Estados Unidos com a América Latina sobre temas de narcotráfico", afirmou Rodrigues. Ele lembrou que a militarização da política antidrogas remonta aos anos 1970, com o então presidente Richard Nixon, a quem se atribui a criação da "War on Drugs" (Guerra às Drogas), estratégia que usava forças armadas no combate ao tráfico.

A professora do IMT critica a forma como a política antidrogas é usada como justificativa para demonstrações de força militar. "O governo Trump opta por não tratá-lo como saúde pública e sim como um simples problema da América Latina, que envia as drogas", afirmou.

Apesar de não descatar o risco de ações mais concretas, a especialista acredita que a intenção imediata de Trump é mais simbólica do que prática: "Foi muito mais uma demonstração de força do que algo que será efetivo". Ela acrescenta que uma ação militar real enfrentaria forte resistência interna nos EUA, inclusive entre eleitores do próprio Trump, que "não querem os Estados Unidos envolvidos em conflitos fora do seu território".

Países como México e Venezuela reagiram às ameaças com firmeza. A presidente mexicana, Claudia Sheinbaum, deixou claro que "não vai aceitar nada que imponha algum risco à soberania mexicana". Já Nicolás Maduro respondeu com ironia quando os EUA ofereceram uma recompensa por sua captura.

Essa tensão, segundo Flávia, pressiona os países da região a adotarem políticas mais agressivas contra o narcotráfico. "Isso acaba pressionando o México e outros países aqui da região a se militarizarem mais [...] para deixar essa ameaça dos Estados Unidos fora do território", observou, alertando para os riscos que essa abordagem representa aos direitos humanos.

Para o professor da UFF, mais do que combater o narcotráfico, a retórica de Trump busca reposicionar os Estados Unidos diante da crescente influência da China na América Latina.

"Essas ameaças de militarização, essas ameaças de sanções, elas estão ligadas diretamente a essa disputa hegemônica entre China e Estados Unidos", afirmou.

Na avaliação de Rodrigues, os EUA estão tentando recuperar uma hegemonia regional que remonta ao fim do século XIX, mas que hoje é abalada tanto pela presença chinesa quanto por uma maior autonomia política e econômica dos países latino-americanos. Ele compara a atual transição à substituição da hegemonia britânica pela americana no início do século XX — com a diferença de que agora os países da região parecem buscar mais protagonismo.

E o Brasil?

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva já se manifestou em alerta quanto ao aumento da presença militar dos EUA na região, como o caso do Paraguai, que permitiu a instalação de um posto antiterrorista norte-americano na tríplice fronteira. Loss vê com bons olhos a cautela brasileira. "A posição de cautela do Brasil é muito importante [...] com muita cautela, porque isso pode crescer e virar um problema".

Ela avalia que uma resposta firme, neste momento, poderia ser contraproducente, especialmente diante das tensões econômicas provocadas pelo recente "tarifaço" imposto pelos EUA. "Aumentar o tom de voz agora não é o melhor para o Brasil" afirmou.

Apesar de o Brasil não estar no centro das recentes declarações de Trump, Rodrigues alerta que o país pode ser incluído futuramente, especialmente se continuar resistindo às pressões econômicas dos EUA. "Não seria de se estranhar que Trump começasse a explorar outras formas de minar o Brasil", disse o professor, citando como exemplo uma eventual tentativa de classificar o Primeiro Comando da Capital (PCC) como grupo terrorista.

Loss rejeita a possibilidade de um confronto direto entre os dois países, apesar de considerar o cenário "catastrófico" como algo sempre presente no radar das doutrinas de segurança. "Não temos condições de enfrentar os Estados Unidos frente a frente na questão militar [...] mas também não é uma potência a se descartar", alertou.


Por Sputinik Brasil