SAÚDE

Com apoio da Marinha, Brasil dribla falta de recursos na produção de radiofármacos contra o câncer

Por Sputinik Brasil Publicado em 19/09/2025 às 15:21
© Foto / Jonas Ponzetto

Equipamento fundamental para a produção de substâncias nucleares em áreas como da saúde e indústria, o reator IEA-R1O, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), saiu de um jejum de mais de 15 anos graças a uma parceria com o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP).

O reator, que está localizado na sede do IPEN, em São Paulo, foi o primeiro do Brasil e entrou em operação em 1957. Após viver épocas áureas de alta produtividade, o equipamento acabou subaproveitado, nas últimas décadas.

Isso porque o IPEN, órgão de pesquisa da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e principal produtor de radiofármacos no país, vem enfrentando escassez de recursos humanos desde a década de 1990, devido à falta de concursos públicos para suprir as aposentadorias.

"É uma força de trabalho que vai diminuindo e que chegou inclusive a promover a parada da produção dos isótopos aqui, então com essa parceria com a Marinha houve essa possibilidade de formação de mais operadores de reator e de retomar essa produção do reator contínua, em alguns dias da semana", explicou a coordenadora do Centro de Radiofarmácia do IPEN, Elaine Bortoleti de Araújo, em entrevista à Sputnik Brasil.

Iniciado em 2020, o convênio começa a colher os louros, com cerca de 30 engenheiros químicos, elétricos e mecânicos da corporação atuando na produção contínua do Lutécio-177, referência no tratamento de tumores neuroendócrinos e no combate ao câncer de próstata, como esclareceu o gerente do Centro do Reator de Pesquisas, Frederico Genezini. O treinamento começou em 2020 e, em 2023, dez operadores foram certificados.

"E aí passaram também a se autotreinar, foram entrando um grupo maior. Hoje estamos fazendo 72 horas de operação", contou ele.

O pesquisador contou que o reator chegou a operar em turno de 64 horas em 1995, produzindo uma parcela do iodo, isótopo muito usado em diagnósticos, para suprir o mercado nacional, mas as aposentadorias e a baixa taxa de reposição fizeram com que essa operação acabasse cessando. Segundo ele, a idade média dos trabalhadores do IPEN hoje é de mais de 65 anos e a chegada dos quase 30 oficiais da Marinha reverteu essa realidade.

Ele lembrou que a parceria com a Marinha existe de longa data e que, nos anos 1980, pesquisas conjuntas ajudaram, inclusive, a que o Brasil dominasse o ciclo do combustível, que é o enriquecimento do urânio. Na época, foi construído o reator IPEN MB01 para o teste de combustível para o submarino de propulsão nuclear. "Era uma parceria muito intensa", lembrou.

Com o novo convênio, o instituto agora irradia o Lutécio-176 enriquecido, que é importado, e o transforma em Lutécio-177, que ao se ligar às células tumorais, entrega a radiação diretamente ao tumor para destruí-lo. O convênio prevê a produção de dois radionuclídeos para a medicina e dois em bancada.

Genezini destacou a importância dessa produção para baratear o insumo no Brasil, cuja utilização é inviável atualmente pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pois cada dose do radiofármaco custa em média R$30 mil.

"Ele [Lutécio-177] é muito caro de importar e a gente tem o sonho de começar a fornecer para o SUS [Sistema Único de Saúde], porque hoje não é um radioisótopo acessível para o sistema público", disse o pesquisador. "Na verdade, esses radiosótopos são subsidiados. O que significa isso? Nós não pagamos imposto para importar esses radiosótopos [...] Só que o que acontece? Nós estamos subsidiando clínicas privadas. Cerca de dois terços do que a gente produz vai para clínica privada. E é um sistema perverso", explicou ele.

A coordenadora do Centro de Radiofarmácia salientou que além de caro, o Lutécio-177 exige grandes desafios, pois, como todos os radiofármacos, tem vida útil muito curta, a logística de transporte e de armazenamento é onerosa e complexa:

"Não é um produto de prateleira, precisa ser produzido semanalmente e utilizado em curto espaço de tempo", esclareceu.

A encomenda deve ser feita com um ou dois dias antes da data de produção e qualquer problema que ocorra no transporte muitas vezes ocasiona atrasos na produção e até perda total do produto:

"Nem toda companhia aérea transporta material [...] tem problemas de desembaraço alfandegário, guerras, situações de bloqueio de espaço aéreo", elencou a coordenadora do IPEN. "Então, realmente adquirir a autonomia da produção em território nacional desses radioisótopos é um fator assim extremamente importante", ressaltou.

Araújo comentou que estão sendo produzidos lotes piloto do radiofármaco e estudo clínico que envolve várias instituições clínicas no estado de São Paulo, o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp), o Hospital do Câncer de Barretos e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Uma vez demonstrada a eficácia do medicamento, ele poderá ser produzido industrialmente para um estudo clínico mais amplo que possibilite o registro do produto.

"A produção nacional, por si só, já traria uma redução bastante expressiva no custo da dose desse medicamento para atingir realmente o Sistema Único de Saúde", comentou ela.

'Quem não tem cão, caça com gato'

O Brasil tem terras raras abundantes para produzir essas substâncias, o que falta é tecnologia para dominar todo o processo dessa produção, como é o caso do Lutécio, explicou o gerente do Centro do Reator de Pesquisas.

"A gente tem que comprar o lutécio enriquecido. O insumo, o que vai ser irradiado, ele é enriquecido. E para chegar no enriquecimento alto, está muito difícil encontrar no mercado".

O Brasil minera o urânio, o enriquece e o irradia. Ao ser irradiado é possível separar o molibdênio do urânio e mesmo do iodo. Entretanto, o lutécio não pode ser produzido a partir da separação do urânio.

"Na teoria todo mundo sabe fazer [...] o problema é quando vai na prática, sempre tem o pulo do gato, que ninguém conta. Nós estamos trabalhando nisso no projeto RMB [Reator Multipropósito Brasileiro]. Mas hoje não temos, então a gente tem que importar".

Entretanto, ele celebrou que o IPEN tem uma linha de pesquisa que busca esse processo com a irradiação de outro nuclídeo, chamado itérbio, que então produziria o lutécio.

"Estamos começando a implementar em escala piloto. E vendo como essa metodologia que a gente desenvolveu se comporta em larga escala".

A partir da aprovação da Anvisa, então, o produto estaria pronto para ser distribuído, inclusive no SUS, ponderou, o que ajudaria a baratear o preço do insumo importado.

 Reator IEA-R1O, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), saiu de um jejum de mais de 15 anos graças a uma parceria com o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP).
Reator IEA-R1O, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), saiu de um jejum de mais de 15 anos graças a uma parceria com o Centro Tecnológico da Marinha em São Paulo (CTMSP).

'Nem tanto ao céu nem tanto à terra'

Por enquanto, a meta é menos ambiciosa, informou Genezini: começar a produzir iodo dentro da parceria com a Marinha a partir de 2026.

"E se a gente tiver essa operação no mesmo ritmo em que estamos fazendo do lutécio, provavelmente, vamos produzir quase a quantidade total de iodo que o Brasil precisa", comemorou. "Se a gente pudesse produzir isso, especialmente mandar para o SUS, isso seria fantástico".

No médio prazo, o iodo poderia até substituir parcialmente o molibdênio, na verdade o produto do decaimento do molibdênio, que é o tequinécio, usado para fazer exame.

A expectativa do instituto é que o Lutécio-177 produzido já esteja pronto para qualificação no primeiro semestre de 2026 para aprovação do uso em clínicas.

"Essa é a nossa meta. Até porque esse convênio não se sustentaria sem esse impacto na sociedade".

O convênio termina em 2027 e a prioridade da Marinha é formar oficiais para o seu programa de propulsão naval nuclear. Mas o pesquisador torce para que a corporação tome gosto pelos radiofármacos e a parceria seja permanente.

"É muito interessante para a Marinha também ter aplicações sociais [...] a nossa esperança é que quando o seu impacto ficar bastante interessante, a Marinha também não vai querer perder esse protagonismo na produção".

Ao salientar que um dos desafios de todo país é o de reter mão de obra capacitada e o conhecimento em território nacional, ele explica que no caso da Marinha, por serem servidores, essa retenção de conhecimento está ocorrendo.

"A manutenção do conhecimento de produção de radioisótopos para medicina também vai ser muito útil para o RMB e para outras iniciativas que o Brasil possa ter no futuro".

Os principais fornecedores desses insumos para o Brasil atualmente, sobretudo o molibdênio-99, são Argentina, África do Sul, Rússia e Holanda. Já o Lutécio-177 vem prioritariamente da Rússia e de Israel. No caso da separação do urânio do lutécio, do molibdênio, a Argentina, por exemplo, tem essa tecnologia.

"A Argentina, do ponto de vista nuclear, ela tem uma robustez maior porque o nosso programa nuclear aqui varia de governo para governo. E lá não. Lá eles têm isso como um programa de Estado", comentou o funcionário do IPEN.

Ele lembrou que um dos objetivos do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB) é mudar essa realidade e universalizar o acesso a esses radiosótopos no Brasil.

Reator do IPEN no âmbito da parceria com a Marinha na produção de radioisótopos
Reator do IPEN no âmbito da parceria com a Marinha na produção de radioisótopos

Reator Multipropósito Brasileiro

Em 2022, a Emenda Constitucional 118 derrubou o monopólio estatal na fabricação desses medicamentos, com o objetivo de democratizar o acesso e viabilizar a produção regionalizada. Mas a mudança não melhorou o acesso a esses medicamentos para a população mais pobre.

De acordo com a Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear especialidade cresce 11% ao ano e cerca de 2 milhões de exames são realizados com radiofármacos anualmente. A responsabilidade de produção de radioisótopos é do Ministério de Ciência e Tecnologia, do qual faz parte do CNEM como autarquia, que por sua vez reponde pelo IPEN.

Cerca de 80% dos radiofármacos mais consumidos são o molibdênio, que exige muita radiação. O RMB, que está sendo construído na cidade de Iperó, interior de São Paulo, promete ser capaz de atender essa demanda e garantir ao Brasil autossuficiência na produção de isótopos utilizados nos radiofármacos.

Na planta constam centros de pesquisa para produção de radioisótopos da área da saúde, da agricultura, da indústria e do meio ambiente.