França em crise: impasse político ameaça conclusão do acordo Mercosul-UE?

Com dificuldades para formar maioria no Parlamento após as eleições legislativas deste ano e depois de ter cinco primeiros-ministros em menos de dois anos, a França segue mergulhada em uma crise política sem precedentes na década. Aliado a isso, cresce o apoio interno à renúncia do presidente Emmanuel Macron.
O acirramento das tensões na França aconteceu em meio à finalização do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, cujas negociações foram iniciadas ainda em 1999. As negociações foram finalizadas no fim do ano passado, porém ainda é necessário aprovação do texto pelos parlamentos dos dois blocos. E a França, maior produtora agrícola da Europa, é o principal país que tem emperrado a finalização da proposta nas últimas décadas.
José Roberto Gnecco, professor da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pós-doutor pelo Programa de Pós-Graduação San Tiago Dantas, lembra à Sputnik Brasil que a situação francesa é resultado da dificuldade do presidente Macron em compor maioria no Legislativo e, diante disso, manter o primeiro-ministro indicado por ele no cargo. "A política externa na França, assim como a Defesa, está centrada na presidência, que é do Macron, enquanto que o primeiro-ministro cuida da administração pública", pontua.
Com a instabilidade interna, apesar de a especialista pontuar que não deve trazer grandes influências na posição de resistência francesa sobre a conclusão do acordo, Macron deve passar a investir cada vez mais tempo para resolver a indicação do primeiro-ministro, acrescenta Gnecco.
"Ou seja, assim como a gente vê no Brasil com o presidente [Luiz Inácio Lula da Silva] sendo consumido por acordos com o Congresso Nacional, sendo obrigado a deixar de fazer um pouco a política internacional, o tempo de trabalho do Macron também vai ser consumido para resolver a crise", destaca.
Já a pesquisadora em relações internacionais pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Beatriz Bandeira de Mello avalia em entrevista à Sputnik Brasil que esse é um momento crucial para a conclusão do acordo.
"O próximo passo seria justamente a avaliação do Conselho Europeu e do Parlamento, que são as instâncias mais políticas da UE. Com esse impasse na França, acredito que as decisões sobre o acordo poderão ser adiadas ou mesmo disputadas entre os parlamentares mais críticos ao texto, com risco de paralisação do processo de validação interno ou, quem sabe, abstenção da França na votação sobre o acordo", afirma.
Aliado a isso, a especialista pontua que "partidos de extrema-direita e de esquerda" na França ainda convergem em parte das críticas sobre o acordo com o Mercosul. Bandeira lembra que no ano passado o país europeu ainda viveu "inúmeras greves e protestos" protagonizados por agricultores contra o texto, inclusive com a participação do maior sindicato do setor.
"Essa federação vem atuando para pressionar o presidente Emmanuel Macron a declinar do acordo. Contudo, no mês passado, um dos ganhos do setor foi justamente a promessa de inclusão de garantias sólidas para proteger o setor agrícola. Isso mostra como esse tem sido mais um fator de desequilíbrio interno na França".
Crise pode afetar 'equilíbrio de poderes' no Parlamento Europeu
A pesquisadora da UERJ frisa ainda que a instabilidade francesa enfraquece a imagem política de Macron e também ajuda a influenciar o equilíbrio de poderes no Parlamento Europeu. "O que pode acontecer é que setores críticos ao acordo na França aproveitem essa janela de oportunidade para obter apoio contribuindo para o adiamento das votações [do acordo com o Mercosul] até que a crise esteja total ou parcialmente resolvida", diz.
Para além da França, Bandeira cita a incerteza sobre a posição da Itália em relação ao acordo, já que até o momento "o governo de Giorgia Meloni ainda não se mostrou totalmente favorável ao texto". Isso porque, segundo ela, no país também há um grande lobby agrícola "que pode influenciar na decisão do governo". E uma possível união entre Itália e França deve ser "vista com olhos de preocupação" pelo Mercosul.
Quais os entraves à aprovação do acordo entre Mercosul e União Europeia?
A professora de relações internacionais da Universidade de São Paulo (USP) Regiane Bressan afirma à Sputnik Brasil que o acordo é um tema bastante impopular entre vários setores da sociedade francesa, além do agrícola.
"Temos que lembrar que a França é uma potência agrícola da União Europeia e tem um setor muito organizado e influente. Macron já inclusive expressou a dificuldade em justificar a abertura de mercados a produtos que não seguem as normas ambientais e sanitárias do país, que são muito rigorosas, o que ele chama de cláusula espelho. Então, a situação é vista por esses grupos como uma concorrência desleal".
E caso a oposição francesa ganhe cada vez mais força, a especialista acredita que o governo pode buscar apoio entre esses grupos protecionistas, lembrando ainda que a França tem forte peso entre o bloco europeu e é a segunda maior economia atualmente. "Essa crise pode consequentemente atrasar decisões estratégicas de integração comercial do bloco".
O que prevê o acordo Mercosul-União Europeia?
O acordo de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia prevê a redução gradual de tarifas sobre produtos agrícolas e industriais, a facilitação de exportações e importações, regras modernas de origem, maior abertura em licitações públicas e compromissos com sustentabilidade e direitos trabalhistas.
Segundo estimativas do governo brasileiro, o pacto pode gerar um aumento de 0,34% no PIB do Brasil até 2044 (cerca de R$ 37 bilhões), elevar os investimentos em 0,76% (R$ 13,6 bilhões) e incrementar as exportações para a União Europeia em R$ 52 bilhões.
Juntos, Mercosul e UE representam um mercado de mais de 718 milhões de pessoas e um PIB combinado de US$ 22 trilhões (R$ 120,2 trilhões).
Mercosul pode procurar outros mercados?
Com mais de duas décadas de negociações se arrastando, nos últimos anos o Brasil tem defendido uma maior diversificação de parcerias estratégicas dentro do Mercosul. Para a pesquisadora Beatriz Bandeira de Mello, o grupo sul-americano pode manter a expansão dos acordos no Sudeste Asiático.
"Também é possível estabelecer parcerias inéditas, por meio de acordos com El Salvador, Coreia do Sul, Japão, Canadá e Emirados Árabes que apareceram como possíveis sócios em reuniões recentes. Cabe ressaltar que no último mês, foi anunciado o acordo com o EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio), bloco composto por Noruega, Suíça, Islândia e Liechtenstein, fato que reforça essa inclinação dos sul-americanos, com protagonismo brasileiro, em diversificar parcerias", finaliza.