Vladimir Barros

É advogado militante, formado pela Universidade Federal de Alagoas e pós-graduado em Direito Processual e Docência Superior. Membro efetivo da Associação Alagoana de Imprensa (AAI) e da Associação Brasileira de Imprensa; Editor do Jornal Tribuna do Sertão. É membro da Academia Palmeirense de Letras e fundador da Rádio Cacique FM.

Vladimir Barros

Dois votos e uma verdade

Publicado em 10/09/2025 às 02:34
© Foto / Andressa Anholete / SCO / STF

O plenário do Supremo amanheceu como quem abre as janelas depois de uma longa noite abafada. Ar entrou. E, com ele, a palavra. Não a palavra inflamada de palanque, mas a palavra que pesa — a que se amarra a provas, a fatos, a datas, a nomes. Em poucas horas, dois ministros — Alexandre de Moraes e Flávio Dino — fizeram o que a democracia exige quando é atacada: nomearam a tentativa de golpe pelo que ela foi e apontaram seus responsáveis. O placar, por enquanto, é 2 a 0 pela condenação. Para quem ainda finge surpresa, vale lembrar: a verdade costuma andar devagar, mas chega com documentos debaixo do braço.

Não há poesia no que veio à tona. Há procedimento. Há cadeia de eventos. Há investigações da Polícia Federal que não falam por metáforas: manuscritos, agendas apreendidas, conversas, lives, reuniões, ordens indiretas e diretas; o encadeamento entre o preparo e a execução. Há a denúncia do Ministério Público Federal, tecnicamente construída, detalhando crimes não por opiniões, mas por tipificações: organização criminosa armada; tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito; golpe de Estado; dano qualificado ao patrimônio da União; deterioração de patrimônio tombado. O direito — que muitos fingem desconhecer — também tem sua gramática da realidade.

Moraes foi didático e duro. Rechaçou a retórica do “não aconteceu, logo não há crime” com o óbvio jurídico que alguns se recusam a ouvir: tentativa consuma crime. Tentativa com atos, planejamento, divisão de tarefas, mobilização. Não foi uma tarde de desvarios. Foi um projeto, com pauta, cronograma, palavras de ordem e logística. A ideia de que “faltou violência” cai diante do cenário inteiro: acampamentos diante de quartéis, ameaças explícitas, rodovias obstruídas, a máquina do Estado tensionada para abrir caminho ao rompimento. A delação de Mauro Cid, atacada com ruído, foi tratada com o que a lei prevê: validade, confronto com outras provas, consistência do conjunto. O resto é espuma.

Dino, por sua vez, alinhavou o fio penal: onde termina o ato preparatório e onde começa o executivo quando o bem jurídico é a própria democracia? A resposta, no caso, não é filosófica — é forense: a preparação já expôs o país a gravíssimo perigo. E quando um perigo é fabricado de dentro do poder, por quem deveria resguardar a estabilidade institucional, a culpa não é difusa, é graduada. Há protagonistas e coadjuvantes; há liderança e aderentes. O voto de Dino reconhece a hierarquia da trama sem aliviar sua gravidade.

Os negacionistas de sempre — esses que gostam de posar de perseguidos em plena liberdade de expressão — repetem como mantra que se vive “sob ditadura”. Chamam censura o que é responsabilização, chamam Justiça o que seria “vingança”. Mas a democracia, justamente por ser democracia, lhes garante o direito de gritar isso nas redes, nos vídeos editados, nas lives em que se autovitimam. E é nesse ponto que a crônica precisa ser clara: se você pode berrar contra as instituições sem temer o caminhão na porta às três da manhã, não é ditadura. Se sua defesa fala horas em sessão pública, com transmissão ao vivo, não é ditadura. Se a imprensa relata o julgamento minuciosamente e você discorda em voz alta, não é ditadura. O resto é truque de propaganda para enganar incautos.

Houve um 7 de Setembro usado como lança-chamas; houve uma reunião com embaixadores transformada em palco para desacreditar o sistema eleitoral; houve operações rodoviárias e pressões subterrâneas; houve a aposta cínica no caos do pós-eleição. E houve, coroando tudo, o 8 de Janeiro — a cena final de um roteiro escrito muito antes, quando se decidiu que perder não era opção e que as instituições deveriam ceder ao grito. Não cederam. A democracia brasileira tem joelhos ralados, mas coluna ereta.

Alguns querem reduzir o julgamento a disputa de narrativas. Não é. Narrativa é o que se tenta colar quando faltam provas. Aqui, sobram. Não se pede fé; pede-se leitura. Não se exige adesão; exige-se honestidade intelectual. Quem vê a pilha de evidências e diz “não vi” ou está cegado pela devoção, ou escolheu a má-fé como profissão. Ambos terão que se haver com a sentença que vier — e com a História, que é menos complacente do que o noticiário.

Sim, o sistema de Justiça precisa de reformas. Sim, a política brasileira deve a si mesma uma reforma há mais de vinte anos. Sim, a democracia é barulhenta, imperfeita, muitas vezes injusta no dia a dia. E, ainda assim, é a única casa que abriga o contraditório e pune aqueles que tentam incendiá-la por dentro. Os ministros não julgam ideologias — aplicam a lei a fatos. Quem quiser disputar projeto de país que monte partido, apresente programa, aceite o jogo, vença eleições. Golpe não é atalho; é crime.

O Brasil, jovem democracia, aprende mais uma lição adulta: liberdade não é aceno de desfile, é disciplina de Estado. Ela se prova quando as instituições suportam o atrito, investigam o poder, expõem o que se urdiu nos bastidores, e, diante do país, decidem. Dois votos já disseram o essencial: houve tentativa de golpe, com autoria e materialidade. O restante do placar definirá penas, não princípios. Estes já estão pronunciados.

E, para quem insiste no teatro mambembe da mentira patrioteira, um aviso sereno e definitivo: a democracia tem paciência de maré e memória de arquivo. Ela anota, arquiva, instrui, julga. Pode demorar. Mas chega. E quando chega, não precisa gritar. Basta escrever — no Diário da Justiça e na consciência nacional — que ninguém, por mais barulho que faça, está acima da lei.